Queridos amigos,
Depois de um mês tão intenso, com as alegrias da Missão País, com os jovens universitários no Gradil, e das festas de anos e de Carnaval no Jogo da Bola, escrevo com mágoa e dor na ressaca da divulgação do Relatório do Estudo sobre os casos de abuso sexual no seio da Igreja em Portugal desde 1950. Não vou discutir se a estimativa de 4.815 vítimas está ajustada ou se serão menos ou mais, nem vou discutir sobre alguma questão processual do estudo (naturalmente o método é questionável) ou sobre as diversas tipologias de abuso sexual identificadas neste relatório (o abuso sexual inclui um largo rol de crimes, muito distintos no seu impacto sobre a vítima). Tragicamente, cada uma das vítimas passou por uma situação terrível e traumatizante. Cada uma das vítimas é uma vítima a mais. Este relatório é muito importante para trazer alguma luz ao flagelo do abuso sexual de menores, tema tão delicado e que não fomos capazes de combater com competência, até agora, na Igreja em Portugal (e noutros países, como os Estados Unidos da América, o Chile, a Irlanda, etc). Espero que esta tal “ponta do icebergue” agora denunciada na Igreja em Portugal, neste trabalho de pesquisa encomendado pela Conferência Episcopal Portuguesa à Comissão Independente, possa contribuir para que haja maior proteção das crianças e vulneráveis na Igreja e em todos os outros campos da sociedade, onde sabemos que a prática de abusos infelizmente acontece.
Antes de mais, rezo por todas as crianças ou adultos vítimas de abuso, seus familiares e também por muitos crentes que se escandalizam e porventura se afastam da Igreja por causa disto. Uno-me no pedido de perdão a quantas vítimas não protegemos devidamente aqui na Igreja. Rezo também por nós, cristãos leigos e diáconos, padres e bispos, que ficamos envergonhados e profundamente chocados com estes crimes horríveis e pecados tão graves cometidos por demasiados outros padres e leigos. E, com mágoa, rezo ainda pelos agressores, já identificados ou ainda por revelar, que devem ser todos julgados nas instâncias civis e canónicas por estes crimes. Certamente serão pessoas que precisam da ajuda no foro psiquiátrico e da nossa oração para a sua conversão pessoal.
Perante este relatório, surgem tantas perguntas: Como é possível haver estes abusos e tantas vítimas no seio da Igreja? Como houve tanto silêncio sobre estes crimes? O que devemos fazer daqui em diante? Ainda podemos confiar na Igreja?
Não terei resposta para todas estas questões, mas julgo que é preciso enfrentá-las.
A natureza humana é frágil e somos todos pecadores. Os cristãos são da mesma massa que todos os outros homens ou mulheres e sabemos como este crime “é transversal a toda a sociedade” (como reconheceu Daniel Sampaio, membro da Comissão Independente). A este propósito, explicava S. Paulo: “é que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico” (Rom 7, 19-20). No mau uso da nossa liberdade, tentados pelo diabo, ser espiritual inimigo e astuto que quer dividir, destruir a Igreja e afastar-nos de Deus e do bem, podemos todos cair no pecado. Porém, há pecados como estes abusos que são muito mais graves (pela matéria, na advertência e no consentimento) e pelo facto de serem cometidos por sacerdotes (que agem nos sacramentos in persona Christi) ou por religiosos e leigos cristãos investidos de determinada responsabilidade e que traem a nossa confiança. Não podemos compreender plenamente como o Bom Deus concede tal liberdade e aparente poder ao inimigo neste mistério do bem e do mal. Sabemos, porém, como o próprio Jesus experimentou no Seu Corpo o sofrimento infligido pelo poder maligno, assim mostrando a Sua proximidade e solidariedade para com todos os inocentes que sofrem algum tipo de injustiça. Na Sua morte e ressurreição, Jesus manifestou a vitória do Bem e do Amor de Deus, mais forte do que o mal.
Perante estes crimes cometidos, alguns levantam a questão se o celibato e se a exigente moral sexual proposta pela Igreja serão eventuais motivos para este comportamento gravemente imoral de alguns sacerdotes e leigos. É preciso contra-argumentar: infelizmente, há diversos estudos que apontam para idêntico número de vítimas de abusos noutras igrejas protestantes ou noutras confissões religiosas, onde os ministros são casados e constituem família. Além disso, sabemos como os abusos de menores acontecem sobretudo no seio da família, praticados por pessoas não celibatárias. Relativamente à moral sexual da Igreja, bem como à acusação de hipocrisia pelo facto de haver sacerdotes ou leigos que não lhe são fiéis: já ao tempo de Jesus, a doutrina parecia tão exigente e, no entanto, com a Sua autoridade de Filho de Deus, Ele não baixou a fasquia: «Aos homens parece impossível, mas não a Deus» (Mt 19,26). Assim, a moral cristã é proposta para todos os tempos – e não apenas contexto de uma época ultrapassada – e a prática da virtude da castidade, vivida segundo a lógica da vocação ao Amor, seja no celibato ou no matrimónio (no caso dos leigos), não resulta apenas nem primeiramente do esforço pessoal, mas será possível e harmoniosa se vivida na amizade com Cristo e como consequência dela, porque «sem Mim, nada podeis fazer» (Jo 15,5). O celibato e a castidade são um dom de Deus que importa pedir e cuidar, essenciais à nossa vida comunitária, numa sociedade híper-sexualizada, onde somos constantemente expostos a tantos estímulos aos instintos primários. Aliás, aqui importa afirmar o importante papel da Igreja na moralização dos costumes, tantas vezes em contra-corrente, desde há dois mil anos, denunciando particularmente a gravidade das relações incestuosas e da pedofilia e a beleza da vocação ao amor humano, na relação sexual (vejam-se as catequeses do Papa S. João Paulo II sobre a teologia do corpo). Não podemos esquecer como Jesus Se identificava com as crianças – «Quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe (cf. Mc 9,37) – e como essa visão mudou a compreensão da dignidade de todas as crianças na sociedade romana.
Levanta-se ainda a questão: Como se perpetuou este segredo dos abusos no seio da Igreja? Sabe-se como o silêncio da vítima ou dos seus familiares é uma realidade comum quando este tipo de crime ocorre, seja pela dificuldade de falar sobre o acontecimento traumático, seja pela vergonha, sentimento de culpa, medo de incredulidade ou de exposição mediática. E nos casos em que houve denúncia, por vezes não houve capacidade de reconhecer a veracidade da acusação. Tomou-se por imaginação, boato ou calúnia – que também por vezes acontece, como foi o recente caso do inocente Cardeal Pell – e alguns sacerdotes mantiveram assim uma duplicidade que os tornou impunes – como era a situação do ex-cardeal americano Theodore McCarrick, entretanto punido e expulso do estado clerical, segundo um relatório do Vaticano de 2020. Noutros casos ainda, quando os Bispos tomaram conhecimento, houve a tentação de encobrir esse crime, não para que fosse repetido, mas por se considerar, erradamente, que era um episódio grave mas isolado, cujo mediatismo poderia causar escândalo aos fiéis e afastá-los da Igreja. Agora, com mais informações do que no passado, percebe-se como essas decisões de alguns Bispos permitiram aos agressores sexuais ser deslocados para outros lugares e repetir o abuso provocando outras vítimas.
É duro escrever sobre este tema e imagino como seja difícil ler este texto. O que devemos fazer de agora em diante? Deixo quatro pistas de resposta, ao começarmos esta Quaresma, período favorável à purificação e conversão.
É tempo de reforçar a oração e o cuidado pelas vítimas, sejam menores ou já em idade adulta. É tempo de rezar pelos agressores, que deverão ser julgados nas instâncias civis e canónicas. É tempo de rezar por toda a comunidade cristã e contar com a ajuda sobrenatural dos sacramentos. Assim, seremos capazes de dar passos de perdão, com a graça de Deus, ajudando a curar os corações feridos, e venceremos a tentação de nos fecharmos em nós mesmos ou de nos revoltarmos uns contra os outros, com injustas generalizações e suspeitas sobre todos os leigos, sacerdotes, bispos ou Papas. Rezando pela Igreja, neste doloroso e necessário caminho de transparência e purificação, lembramos que ela é nossa Mãe e que é felizmente muito mais do que estes terríveis acontecimentos. Não confundamos esta ínfima parte com todo o resto de bons testemunhos de fé e de desejo de santidade! Como rezamos em cada Missa, pedimos a Jesus que “não olheis aos nossos pecados, mas à fé da Vossa Igreja, e dai-lhe a união e a paz segundo a Vossa vontade”. A nossa vida alegre, mesmo com esta dor, será o testemunho mais convincente de Cristo vivo e ressuscitado que permanece na Sua Igreja – «sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela» (cf. Mt 16,18).
É tempo de nos fortalecermos também na amizade e proximidade uns com os outros, na Igreja e em todo o lado, reforçando os laços em comunidade. Precisamos de acolher as vítimas que ainda não tenham conseguido expressar a sua dor. Precisamos de partilhar esta dor na comunidade, com os nossos familiares, amigos e vizinhos, crentes e não-crentes, para que todos compreendam como na Igreja sofremos com todas as vítimas de abusos e não pactuamos com estes crimes. A amizade verdadeira passará também por estarmos disponíveis para apoiar ou corrigir os nossos irmãos e também para acolher a correção fraterna necessária.
É tempo de levar a sério este Sínodo que o Papa Francisco convocou para toda a Igreja e que permitirá encontrar, à luz do Espírito Santo, o que pode e deve ser mudado na estrutura de gestão das paróquias e da Igreja local e na nossa vida comunitária eclesial. Acredito que a corresponsabilidade de leigos e padres poderá evitar abusos de poder – um ponto-chave nesta questão dos abusos – e o silêncio de encobrimento. A lógica na Igreja nunca será a do poder, mas a do serviço, à imagem do Seu Senhor: «Quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos» (Mc 9,35). Neste Sínodo, também dever-se-á aprofundar o acompanhamento da formação dos seminaristas, sacerdotes e leigos responsáveis ao longo do tempo. Precisamos também de garantir um ambiente seguro para todos e é justo afirmar como muitos passos já têm sido dados nesse sentido, na aplicação da política de “tolerância zero” com os agressores, denunciando e entregando às instâncias civis e canónicas, conforme tem insistido o Papa Francisco. Têm sido implementadas boas práticas, seja na Catequese ou no acompanhamento dos jovens nos diversos grupos e Movimentos dentro da Igreja ao longo dos últimos anos (o exemplo do “Escutismo Seguro” é significativo).
Finalmente, é tempo de levantar a cabeça e imitar Maria, que se levantou e partiu apressadamente para servir, evangelizar e ver o sinal de Deus: vem aí um milhão de jovens para a Jornada Mundial da Juventude com o Papa e para nos ajudar a levantar o ânimo! Com o acolhimento a todos estes jovens, mostraremos que ainda podemos confiar na Igreja, que tem um rosto jovem e que quer continuar a ser sinal de Deus no meio do mundo!
Sob a proteção de Maria, peço que Deus nos abençoe.
Não desanimemos, coragem e santa Quaresma!
Um abraço amigo do padre Tiago
(In Jornal O Ericeira, fevereiro 2023)