Bispo Robert Barron
5 de novembro de 2024
Regressei há poucos dias da segunda sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, em Roma, e confesso que me sinto um pouco exausto. Como já referi, o Sínodo tem a duração de quatro semanas e os dias de trabalho são intensos. Por isso, embora tenha sido, sem dúvida, uma experiência enriquecedora, estou contente por já terminado e por estar de volta a casa. Gostaria de partilhar convosco algumas impressões e avaliações gerais da experiência e também de analisar algumas questões específicas que foram discutidas no documento final do Sínodo.
A segunda sessão do sínodo foi uma melhoria relativamente à primeira, na medida em que voltou a centrar-se mais no tema que deveria estar a ser analisado - nomeadamente, a própria sinodalidade. A primeira sessão, em outubro passado, tinha sido uma espécie de “omnium gatherum ,“uma miscelânea de tópicos, uma vez que foram apresentados temas que iam desde a aproximação aos LGBT até à ordenação de mulheres, ao casamento dos padres e à reforma eclesiástica. Pondo de lado estas questões, o Papa permitiu que nos concentrassemos no assunto em questão, a sinodalidade. Muitas vezes, ao longo dos últimos anos, as pessoas perguntaram-me o que significava “sinodalidade”. As conversas que tivemos ao redor das mesas e nas sessões plenárias deste ano, ajudaram-me a clarificar o meu próprio pensamento sobre o assunto. Com demasiada frequência, mesmo os defensores da sinodalidadequando querem explicar a sinodalidade recorrem a generalidades vagas e clichés como- “caminhar juntos”, “ir às periferias”, “escutar”, etc. Quando vamos realmente ao fundo da questão, por “sinodalidade”, entendemos em primeiro lugar, a tentativa consciente e institucionalmente instanciada de permitir que mais pessoas do povo de Deus, especialmente aquelas cujas vozes não têm sido normalmente ouvidas, possam participar no processo de tomada de decisões. Em segundo lugar, referimo-nos ao estabelecimento de protocolos de responsabilidade e transparência no que diz respeito ao governo da Igreja.
Como tal, a sinodalidade representa uma instância prática da eclesiologia de comunhão que surgiu dos documentos do Vaticano II e do ensinamento dos papas pós-conciliares. Com efeito, é uma convocação para que todos os baptizados assumam uma real responsabilidade pela vida da Igreja. A grande maioria dos debates e das intervenções do Sínodo teve por objetivo dar corpo a esta ideia. Assim, falou-se de conselhos paroquiais, de conselhos pastorais diocesanos, de conselhos financeiros, de comissões de revisão, de um maior envolvimento das mulheres na formação dada nos seminários, de um compromisso renovado com a consulta ecuménica, da realização de sínodos locais, do estabelecimento de protocolos de responsabilidade, etc. Tudo isto, parece-me ser saudável, e estou contente por o sínodo o ter encorajado. Uma observação que fiz com frequência foi a de que a maioria destas ideias, se não todas, já estão em ação na igreja americana. Por isso, de certa forma, os debates sinodais foram orientados para tornar mais acessível em todo o mundo aquilo que, em grande parte, consideramos um dado adquirido nos Estados Unidos.
Ficarei grato para o resto da minha vida pela oportunidade de ter tido esta experiência viva da universalidade da Igreja
Outra caraterística do Sínodo foi a exposição à complexidade estimulante da Igreja Católica. Cerca de quatrocentas pessoas participaram nos debates e eram oriundas dos seis continentes habitados. Se se prestasse o mínimo de atenção às discussões, era praticamente impossível permanecer paroquial. O estilo africano não é o estilo asiático; os latino-americanos enfrentam problemas muito diferentes dos norte-americanos; o sul da Europa não é decididamente o norte da Europa; um ucraniano e um timorense vivem a liturgia de formas muito diferentes; etc. O meu amigo John Allen, o experiente vaticanista, comentou durante um jantar, que se pode distinguir, num ápice, um bispo que participou num sínodo de um que não participou: o primeiro está mais sintonizado com a Igreja internacional do que o segundo. Ficarei para o resto da minha vida grato pela oportunidade de ter tido esta experiência viva da universalidade da Igreja.
Sem contradizer nada do que foi dito acima, gostaria de partilhar convosco algumas preocupações de ordem geral que tive durante as duas sessões do sínodo. Primeiramente, o sínodo, ao concentrar-se com tanto entusiasmo na questão de atrair os leigos para o governo interno da Igreja, tendeu a ignorar o papel desempenhado por 99 por cento dos leigos - nomeadamente, a santificação do mundo. Os padres conciliares do Vaticano II ensinaram que a esfera de atividade própria dos leigos é o “saeculum “,a secularidade- ou seja, as áreas das finanças, dos negócios, do entretenimento, do jornalismo, da família, da educação, etc. Formados pelo Evangelho, devem entrar nestes domínios com uma intencionalidade cristificadora, utilizando os seus conhecimentos específicos para os tornar mais conformes ao Reino de Deus. É, de facto, bom que tanto os leigos como as leigas sejam incluídos nas estruturas de governo da Igreja, mas devemos preocupar-nos, acima de tudo, em formar a esmagadora maioria dos leigos que farão o seu trabalho sagrado “no saeculum,”, nas actividades temporais- o que, pensando bem, não seria um mau tema para um futuro sínodo. De acordo com a prioridade frequentemente declarada pelo Papa Francisco, devemos encontrar formas sempre novas de ser uma Igreja que “sai de si mesma”. Tive a forte impressão de que a preocupação do sínodo foi, pelo contrário, ad intra, direcionada para a vida interior da Igreja.
Uma outra preocupação relacionada tinha a ver com a perpetuação e intensificação da própria sinodalidade. Muitas vezes, nos últimos dois anos, os membros do sínodo propuseram que se estabelecessem estruturas de sinodalidade a todos os níveis da vida da Igreja e que se encorajasse uma consulta cada vez mais alargada. Tenho as minhas dúvidas. A certa altura, durante as discussões, disse: “Quero partilhar convosco um episódio que guardo de Ratzinger” e partilhei a seguinte história: Quando Joseph Ratzinger rompeu com o conselho editorial da revista Concilium, no final dos anos sessenta, apresentou uma série de razões para esta rutura. Uma delas foi o facto de o objetivo declarado da “Concilium” ter ser o de perpetuar o espírito do Vaticano II, e Ratzinger sentiu que isso era um erro. Não é que ele tivesse alguma coisa contra o Vaticano II - afinal, foi um dos principais contribuintes para os documentos conciliares - mas antes porque achava que a Igreja se devia afastar dos concílios e sínodos com uma sensação de alívio. Por vezes, a Igreja tem de criar expetativa e resolver alguns assuntos de importância, mas, depois de o ter feito, regressa ao seu trabalho essencial de evangelização, de culto a Deus e de serviço aos pobres. Ficar permanentemente na atitude de um concílio - questionar, discutir, avaliar, apreciar, argumentar, etc. - é caír numa espécie de paralisia eclesiástica. Por isso, mesmo reconhecendo a legitimidade de certas práticas e estruturas sinodais, será que podemos partilhar a mesma saudável suspeita ratzingeriana da implementação de uma burocracia que pode tornar-se demasiado grande e esclerótica?
Por último, gostaria de abordar duas questões muito particulares que foram debatidas durante o Sínodo e que aparecem, de forma algo ambígua, no documento final. A primeira é a ordenação de mulheres ao diaconado. A proposta de permitir o acesso das mulheres ao diaconado foi, de facto, levantada na primeira sessão do Sínodo, mas depois o Papa remeteu-a para um grupo de estudo e retirou-a da agenda da segunda ronda. No verão passado, durante uma entrevista televisiva, o Papa Francisco afirmou claramente que as mulheres não seriam admitidas nas fileiras dos ordenados, deixando em aberto a possibilidade de poderem aspirar a um ministério de serviço semelhante, em alguns aspectos, ao diaconado. Esta determinação foi reafirmada pelo Cardeal Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, no início da segunda ronda do Sínodo. Mas, nessa altura, alguns delegados sinodais expressaram a sua insatisfação com a apresentação do cardeal e instaram-no, em privado, a permitir que o assunto fosse mais amplamente discutido. Assim, no documento final, afirma-se que o acesso das mulheres à ordenação diaconal permanece “uma questão em aberto”. Ora, muitos de nós ficámos muito insatisfeitos com esta formulação, porque, se interpretada diretamente, coloca o Papa Francisco em desacordo com o Papa João Paulo II, que afirmou tão claramente quanto possível que a Igreja não tem poder para admitir mulheres às Ordens Sagradas. Tendo em conta o que o Papa Francisco tem afirmado com frequência, não creio que alguma vez fosse realmente nessa direção, pois tal medida provocaria uma crise eclesiológica. Mas a linguagem dá a impressão de que ele poderia fazê-lo, e isso é problemático. Creio que a interpretação correta da linha controversa é simplesmente que várias formas de ministérios de serviço que não a ordenação, análogos ao diaconato, ainda estão em discussão.
A segunda questão é a da autoridade doutrinal das conferências episcopais. Havia vários defensores do Caminho Sinodal alemão no sínodo e, para seu crédito, eles não fizeram nenhuma tentativa de esconder as suas intenções. Uma proposta era dar às conferências episcopais locais o poder, pelo menos até certo ponto, de tomar decisões doutrinais. Quando esta sugestão foi agendada para a segunda sessão no documento sinodal “Instrumentum Laboris”, muitos de nós ficamos inquietso, pois receávamos que uma tal mudança provocasse o caos. Será que, por exemplo, o casamento gay seria permitido na Alemanha, mas seria um pecado mortal na vizinha Polónia, celebrado no Canadá mas considerado ultrajante na Nigéria? O documento final fala da capacidade das conferências episcopais para articularem a única fé de uma forma devidamente inculturada. Quer isto dizer que podem aplicar pastoralmente o ensinamento imutável da Igreja, ou que podem adaptar esse ensinamento a diferentes cenários culturais? Se for esta última hipótese, o que é que aconteceria à unidade da Igreja na doutrina e na prática? A própria ambiguidade da formulação fez com que alguns de nós sentissemos desconforto com ela. Quando o processo sinodal teve início, há cerca de três anos, alguns receavam que os ensinamentos morais essenciais da Igreja pudessem mudar. Nenhum desses receios se concretizou.
O Sínodo, sob a orientação do Santo Padre, chegou a certas decisões de ordem prática no que diz respeito à forma como as decisões são tomadas e a responsabilidade é garantida - e, como eu disse, tudo isso é bom. Não mudou nada no que respeita à doutrina ou à moral. A razão da estabilidade e do sucesso do sínodo é o Espírito Santo. Algo que me chamou a atenção durante as duas sessões foi a importância da oração. Rezámos no início de cada dia; parámos para quatro minutos de oração de meia em meia hora, mais ou menos, durante os nossos debates; começámos cada módulo do Sínodo com uma Missa solene no altar da cátedra; tivemos uma sessão de oração ecuménica particularmente bela, uma noite, no local da crucificação de Pedro; e encerrámos com uma Missa magnífica sob o baldaquino recentemente restaurado na Basílica de São Pedro. Nada disto foi meramente decorativo; tudo isto pertenceu à essência da experiência sinodal. O Espírito guiou-nos para onde queria que fôssemos e impediu-nos de nos desviarmos do caminho certo.
Tradução livre de Maria do Rosário H. Mckinney